A cadeira de rodas do João

Na cadeira de rodas seguia aquela alma, presa naquele corpo cem por cento deformado. Éramos uma família unida em torno daquele ser que pouco ou quase nada se comunicava.

Nós, irmão e irmãs pouco entendíamos aquela situação. Porque nossos pais teriam gerado aquele ser oblíquo, triste, problema, que só atrapalhava e incomodava a todos. Na minha ideia de caçula aquele irmão mais velho já nascera na cadeira de rodas.

Subimos num ônibus certa ocasião. Papai tirava meu irmão da cadeira de rodas e subia com ele no colo seguido pela família naquelas incursões sofridas. Tudo parava naqueles momentos. Todo mundo dava passagem e atrás seguíamos nós e mamãe. Todos pequenos. Praticamente alterávamos o cenário por onde passávamos.

Naquela tarde havia um médica , não sei bem, uma benzedeira e para longe precisávamos nos deslocar. Só lembro das tristes cenas. Sempre ouvia comentários sobre meu irmão, justo o mais velho, entrevado, retorcido, uma paralisia cerebral grave o assolava desde o nascer, enquanto nós outros três éramos perfeitos, até demais.

Chegamos lá, naquela casa, e aquela mulher me emocionou de pronto. Bastou aparecermos na porta daquela humilde residência, depois de três horas de périplo, e um sorriso que eu nunca tinha visto antes nos recebeu a todos como uma família normal e meu irmão foi recebido como o principal ente da prole. Papai e mamãe choraram do começo ao fim daquele encontro com aquela mulher. Não me lembrava de seu nome, só de seu sorriso e suas palavras.

– Chegou finalmente meu querido João. Como você está bem! Quanto tempo hein, quanto te esperei? Como vão as coisas por aí, e essa família que te recebeu, que benção, que oportunidade para todos. Que linda família você uniu em torno de você meu querido.

Parecia uma conversa fluida. Cada gemido do João, e ele só gemia mesmo o tempo todo, tudo era como um bate-papo e cada palavra dela era correspondida, eles pareciam conversar e se entender num diálogo perfeito. Às vezes ela só ficava passando as mãos no corpo dele como que tirando coisas ou simplesmente aliviando suas dores e seu sofrimento e do rosto de João começaram a brotar lágrimas nunca vistas por nós de sua família. E por um momento achei que via alguém saindo de dentro dele, parecia ele mesmo, eu vi, ele passeou entre nós de mãos dadas com a mulher beijando papai e mamãe, e Lia e Paula que estavam adormecidas  num transe e quando chegaram perto de mim, me deram um abraço que nunca mais vou esquecer. Parecia que flutuavam e chorei até não poder mais. Nossa, meu Deus, que foi aquilo!

Fomos embora de volta para casa na mesma romaria de sempre, toda a dificuldade material que passávamos, mas desde aquele dia muita coisa mudou em nossa família.

Voltávamos quase uma vez por mês à casa daquela mulher e tudo pareceu mudar em nossas vidas. Meus pais aceitaram cada vez mais o João e conversavam mais com ele assim como nós, seus irmãos, aprendemos a respeitar e cuidar mais dele também. Ele dependia de nós mas parece que todos nós é que dependíamos dele na verdade.

Dona Maria era o nome dela. Ela já faleceu e no dia de sua morte o João teve uma forte convulsão que o levou também. Vivemos trinta anos juntos. Nossos pais sofreram bastante,  mas a passagem do João pelas nossas vidas foi essencial para sermos hoje melhores do que antes dele.

      Quinto Zili

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