Naquele viaduto, vidas

Naquele viaduto, vidas

Aquele pequeno espaço tinha servido de casa. De um cômodo, por onde passou e dormiu uma família. Maria, Pedro, três filhos pequenos e dois cachorros.

Uma enchente histórica levou a casa, tudo que tinham e fugindo do perigo, à noite,  acabaram nesse buraco sob um viaduto.

Cidade grande, calamidade, emergência e mais uma família assim como tantas outras se vê em completo abandono.

-Mãe tô com fome, mãããe!

-Quero dormir, não vamos voltar?

-Tenho frio mãe.

As sete bocas nada tinham com o que se alimentar e só tinham um galão de água. O local era úmido, sujo e frio. Mesmo sendo verão de enchentes, o calor esquecera daquele lugar.

-Pai tô com medo, ninguém vai ajudar a gente?

Apesar do desespero, pelo menos as crianças dormiram no calor do colo dos pais e grudados aos cachorrinhos. Pedro antes de amanhecer olhou para Maria e se entenderam quase sem falar. Saiu desesperado para buscar ajuda, alimentos e avisou Maria que se não retornasse até o final daquele dia ela teria que sair dali e levar todos até achar um abrigo de prefeitura. Um dos cachorros simplesmente o acompanhou enquanto o outro montou guarda ficando, com o que pareciam entender o drama e colaborando na segurança.

Pedro saiu bastante desesperado. Caminhava, corria, suava, chorava, pensava e orava em voz alta como a convocar o Teco, seu amigo cão a fazer o mesmo “não posso deixar minha família sofrer desse jeito meu Jesus; me ajuda pelo amor de Deus”.

Subiu e desceu ruas, quilômetros, horas caminhando. Gente olhando para ele com desconfiança. Parecia um indigente, sujo e cansado. Num dado momento viu o Teco inquieto que sai correndo em direção a uma cena pouco distante, dois homens atacando alguém. O cão chega mordendo um deles enquanto o outro ainda tentava tirar pertences da senhora machucada deitada no chão, e antes que Pedro os alcançasse eles fogem covardemente. A velhinha muito machucada, sangrando na cabeça e nos braços sem conseguir se levantar começa a falar:

-Ai minha Nossa Senhora, graças a Deus alguém apareceu. Me ajuda aqui moço. Ai! Ai! Pega ali meus óculos. Os danados me levaram tudo, olha só!

-Eu ajudo a senhora…

-Olinda, filho.

-Pedro, dona Olinda

Ele a carregou por mais de um quilômetro até onde ela morava. Sua casa pequena, mas muito arrumada, se destacava na rua estreita e de poucas árvores. Entraram e ele a levou ao quarto onde repousava seu marido doente numa das duas camas. Apareceram vizinhas que acudiram a senhora. Falavam com ele Pedro, para saberem do acontecido, ao que pacientemente relatava.

Pedro apesar de já inquieto e preocupado  ficou mais um tempo por perto, quase duas horas pois se compadecera da senhora, mas precisava ir embora para continuar sua missão e ao pedir um copo d’água para sair alguém lhe acenou com um prato de comida e um pouco de ração para seu amigo e lhe pediram que fosse ao quarto da senhorinha.

– Coma Pedro. Você deve estar com fome. Carregou muito peso (Risos). Para onde ia, quem é você?

Ele, enquanto engolia a comida e ia olhando pelas paredes os retratos de uma família linda, acabou contando seu drama. Dona Olinda se emociona e ao som daquela narrativa também olha para um pequeno quadro sobre seu criado mudo.

-Quem são dona Olinda?

-Meu filho, nora e meus 3 netos.

-São lindos, que bela família a senhora tem.

-Eram sim. Há dois anos perdi todos num acidente de carro.

Pedro não sabia o que dizer. Ficou mudo, estarrecido. Seu corpo estremeceu e sentiu muita tristeza, a mesma que estava vivendo com sua família em risco.

-Pedro, vá imediatamente buscar sua mulher e seus filhos. Traga-os para cá. Tenho um quarto nos fundos que vocês podem usar por enquanto.

O homem se ajoelhou perante a senhora, beijou suas mãos, olhou para o velho da cama ao lado, que lhe sorria. Saiu em disparada, correndo. Depois de três horas chega com a família mais Teca e Teco.

A vida naquela casa depois de dois meses mostrava o que é se encontrar um oásis em pleno deserto. O casal de velhos entendeu que Deus lhes devolveu a família. Pedro e sua família entenderam que Deus lhes enviou um par de anjos protetores.

Pedro era um faz de tudo na casa e pelos velhos, além de conseguir fazer bicos e conseguir ganhar a vida honestamente e Maria uma pessoa extremamente caridosa que cuidava dos velhos com amor, o mesmo que dedicava aos seus filhos com esmero.

Em seis meses o velho marido de Dona Olinda falece. Ela na sequência também começa a adoecer e por não terem parentes a quem deixar o pouco que tinham, avisa Pedro que se ela morresse ele deveria procurar um tal senhor no cartório do centro.

Dona Olinda havia sido importante professora de uma escola da região e acabou conseguindo lá mesmo matricular os três filhos do casal, Ana, Clara e Junior, 9, 7 e 5 anos. Ensinou tudo o que podia a Maria, inclusive a costurar numa máquina que possuía. Em um ano ela se vai, deixando tudo que tinha para o casal. A casa, economias e uma gratidão enorme pois Pedro e Maria cuidaram dos velhos como se seus pais fossem.

 

Cidade grande, desumana, trágica.

Gente boa, calor humano.

Providência divina.

Desespero e medo.

Amor e compaixão.

Tudo se mistura numa grande cidade. Inclusive vidas”

Quinto Zili

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Lata d’água na cabeça

Filho no banco de traz do carro, pergunta ao pai enquanto este dirigia:

-Pai, você viu aquela mulher?

Pai meio absorto nem responde, trânsito pesado de cidade grande, cansaço, tinha pego o filho na escola, tarefa que não lhe comprazia tanto.

-Pai?

-Que foi?

-Aquela mulher, como ela consegue carregar aquele saco gigante na cabeça e ainda em cada mão uma sacola grande ?

Pai meio sem paciência e além do mais não gostava de passar naquele bairro pobre …

-Ela é artista, ganha muito dinheiro fazendo isso, tá de boa.

-É mesmo?

Pai queria matar o assunto, com aquela brincadeira de humor tosco e desprezo.

-Mas pai, como é que ela consegue ? não deixa cair nada, você viu?

-É artista!

-Você falou que ela é rica?

-É, tá até se divertindo; até lata d’água na cabeça ela também consegue levar.

-Pai, porque você não aprende isso com ela?

-Pra que filho?

-Daí você não precisava mais ir pro seu trabalho, ficaria menos nervoso, brincaria mais comigo e ia ter bastante dinheiro também pra comprar aquele carrão vermelho que você fala que só rico tem, a Ferrari. Quantas que ela deve ter, né?

No primeiro posto de gasolina o homem para o carro, deixa no abastecimento, sai com o filho e entra na loja de conveniência. Tomam sorvete juntos, enquanto o pai ganhava conveniente tempo. Queria mesmo apagar o recente acontecido. Até estava se sentindo meio mal.

Tempos mais tarde, dois anos depois, o pai um pouco mudado, viaja ao nordeste com o filho e a esposa para visitar a família há muito deixada para trás.

Na pequena roça de sertão, na caatinga quente, pobre e humilde, onde os pais viviam da cana e da mandioca, são recebidos e o menino chora ao ver a vó que chegava ao mesmo tempo, vinda de um nada no meio da poeira com uma enorme lata d’água na cabeça para abastecer a casa de taipa e sapé.

O filho pródigo voltou!

Quinto Zili

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